sábado, 31 de maio de 2008

... FORA DA ÁREA DE CORBETURA



- Você é cineasta?
Ela se volta, olha de maneira surpresa para aquele homem a sua frente. Alto, moreno claro, cabelos excessivamente negros, bigode bem aparado, formando um atraente conjunto com a barba de aspecto macio e suave. Olhos cor de mel, com cílios negros e longos. “Olhar árabe” – ela pensa. Linhas de rugas abaixo dos olhos e fios brancos em sua barba denunciam a idade. “É quase um cinqüentão, certamente”.
- Não, sou professora, responde num sorriso tímido.
- Você gosta da África?
- Sou pós-graduada em África!
- Hum, eu morei em Angola 11 anos.
- Que legal!
- Sua companhia?
- Um amigo.
Então, ele estende um pedaço de papel e pede: “liga pra mim”. Ela pega o papel e entra imediatamente no toalete feminino, não lhe dando chance de perguntar mais nada, receosa de que o seu amigo, que a acompanhara ao cinema, a veja falando com um estranho. Abre o papel e lê: Joel. “Nome bonito” - pensa. Nunca havia conhecido um Joel.
No saguão, sua companhia a aguarda. Começam a se dirigir à saída, quando ela avista um conhecido em comum.
- Olha quem está ali. Nosso amigo ator.
- Onde?
- Ali, entrando no banheiro.
Seu amigo corre em direção ao banheiro masculino. Ela vai atrás e pára próximo ao balcão do café, para aguardar.
Logo em seguida, sai alguém do banheiro enxugando o rosto num lenço e seus olhos se encontram. Joel sorri e se aproxima perguntando-lhe o nome. Mal ela responde, o amigo que correra atrás do outro, sai do banheiro e vem em direção a eles falando eufórico: “Era ele mesmo, ele mesmo!”. Joel, com um sorriso fino nos lábios, se afasta, e ela também ri. Um sorriso divertido, achando engraçado toda àquela situação. Seu amigo ao entrar passara por ele, com certeza mal cumprimentou o ator, pois saíra imediatamente. Estava claro que ele suspeitava daqueles olhos árabes.
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Desde que haviam chegado à fila do cinema, Joel, que estava imediatamente à frente dela, não parou de olhá-la. Talvez se conhecessem de algum lugar. Ela olhou também várias vezes pra lembrar de onde. Por fim, tive a certeza de que se tratava apenas de um ousado paquerador e tentou não olhar mais. Mas fora hipnotizada pelos olhos dele. Olhar profundo, emoldurado por espessos cílios negros. “Olhar de árabe” - pensou.
Durante a sessão. Joel posicionou-se ao lado dela, que até pensou que ele iria sentar-se próximo, mas ele escolheu três fileiras atrás e todas as vezes que ela olhava, fingindo interesse na cabine de projeção, lá estava ele, sustentando seu olhar.
Ao término da sessão, ele a aguardou sair da sua fileira. Na posição em que ela estava, dava pra vê-lo bem. Corpo esguio, ar imponente, lembrava-lhe um árabe. “Que homem bonito, queria um homem assim pra mim” - pensou. E, ao passar por ele, não resistiu e correspondeu ao seu olhar, sentindo-se refém daquele homem que a atraia.
Agora, era um olhar acompanhado de um fino sorriso; um sorriso de quem ri do mundo. E foi com esse sorriso nos lábios que ele a acompanhou até a porta do toalete e, com total ousadia, lhe abordou entregando-lhe o número do telefone.
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O amigo ator sai do banheiro, junta-se a eles e, conversando alegremente, saem do prédio. Joel sai um pouco na frente. Ela não o vê mais. Quando chegam lá fora, se depara com a figura dele - tendo a luz do poste refletindo nos seus negros cabelos - em pé na calçada, olhando-a ostensivamente.
Desconcertada caminha ao lado dos amigos, entabulando uma conversa à qual não presta a mínima atenção. Dão a volta no quarteirão em direção ao Metrô. Compram as passagens e descem à plataforma. Quando passam pelos bancos, quem está sentado no banco, com aqueles olhos árabes e com o fino sorriso nos lábios? Joel.
O trem chega, todos embarcam. Joel entra por outra porta. Senta e fica a olhar para o grupo de amigos. Eles conversam, sobre teatro, cinema, algo assim. Está tão desconcertada com a atitude dele que lhe é difícil organizar seus pensamentos. O trem chega à estação em que ela vai saltar, despede-se do amigo ator que seguirá no trem e salta com o seu acompanhante. Não ousa olhar pra trás. Teme estar sendo seguida pelo homem de olhar árabe. Não está.
Chegando em casa, liga para o número do celular de Joel: “Esse numero está desligado ou fora da área de cobertura.” - informa a voz da operadora.
Ele também havia lhe deixado um email. Vai para o computador e procura Joel no “Orkut”. Não acha. Deixa passar uns minutos e volta a ligar. De novo desligado ou fora da área de cobertura. Desiste, vai para o banheiro tomar um banho e concentra-se em analisar o filme africano a que acabara de assistir. “O Herói”, onde conta a história de um herói de guerra que perderá a perna numa mina. Por conta disso, recebera baixa do exército, depois de vinte anos de serviço militar, com apenas uma medalha no peito. Padece na fila de espera para ganhar uma prótese, na esperança de que com ela possa ter mais chances de conseguir um emprego. Consegue a prótese. Mas como é morador de rua, durante a noite, tem sua prótese roubada, bem como sua medalha. “Um herói de guerra. Hoje em dia é assim que são tratados os heróis”.
Na volta, ainda enrolada na toalha, pega o telefone e disca novamente...

...FORA DA ÁREA DE COBERTURA - in URBS DE PAPEL (no prelo)

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