terça-feira, 10 de maio de 2011



A PROVA

Marina precisa tirar dez na prova de matemática. Seu diploma dependia disso. Mas era muita matéria para estudar, temia não conseguir. Contudo, a sorte parecia está do seu lado. Foi por um acaso que ela viu que a coordenadora deixara o arquivo de provas destrancado. Sem hesitação pegou a prova e, enquanto lia com surpresa o cabeçalho que dizia : PROVA COM CONSULTA, a coordenadora entra na sala. A prova cai-lhe das mãos.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

O CAVALHEIRO DA TRISTE FIGURA


- O Senhor quer fazer o favor de se retirar?
- Quem, eu?
Ele não entendeu que o segurança falava com ele. Estava vestido de preto, bem a caráter para um evento com bandas de rock. Sua roupa não estava suja; meio suja, talvez, além de meio desbotada.
Próximo ao balcão, fumava um cigarro enquanto ouvia a banda tocar. Fazia gestos com a mão, usando o braço como se fosse o braço de um violão, guitarra, ou baixo, coisa assim. Cabelo em desalinho, pele escura, suponho que pela falta de banho. Não negava sua condição de mendigo, embora tentasse não ser. Camisa bem arrumada por dentro das calças, um cinto de couro mantendo as calças na cintura. Dançava discretamente e fazia gestos de aprovação com a cabeça em direção aos demais clientes. Sim, porque ele também se considerava um cliente, acabara de tomar uma cerveja paga por ele mesmo.
Sucata de luxo começava a tocar, e, a cada acorde, ele esboçava sua aprovação com um sorriso largo, deixando à mostra dentes estragados pela nicotina e, há muito, sem escovação.
Um solo longo de guitarra fez com que ele desse um grito de contentamento: yes!
Sucata de luxo continua: “Come Together” . Sucata... Uma ironia na verdade. Sucata estava mais para aquela pobre figura. Pobre figura! Fez-me lembrar Don Quixote. Isso, uma figura quixotesca, dançando entre os “normais” do cotidiano domingo, com suas famílias, num certo bar temático de subúrbio, que resolvera promover um evento: “Fome de Música”.
Fome de Música é uma iniciativa de músicos classe média que se apresentam sem cachê ou couvert, em troca de doações de alimentos não perecíveis para ofertar a entidades filantrópicas.
Comovente! Todos nós estamos ali, fazendo nossa média com as minorias carentes,tranqüilizando nossas consciências e expurgando nossas culpas diante da miséria alheia, enquanto nos empanturramos de frango à passarinho regado a Skol.
Fome! Quem tá com fome? Eu? Ele? Eles? Nós? Todos nós! Essa fome que resolvemos traduzir como fome de música, na verdade é fome de tudo. Fome de ser alguém, de ter alguém, de ter algo, de ser importante. De ser melhor que os nossos beneficiados.
Todos famintos, percebe-se pelo olhar. A qualquer descuido, alguém pulará no seu pescoço. O menos faminto é o mendigo. Aliás, ele é o único ali que realmente tem fome de música. Ouço do dono do bar que ele, o mendigo, outrora fora um músico, um Band líder conceituado. Por falta de espaço na mídia, caiu no esquecimento, entregando-se à bebida e à mendicância. Não é perigoso, na verdade. É do tipo “ maluco beleza”, mas é testemunho vivo da desgraça humana, do fracasso. O que nenhum de nós estava disposto a ver.
“Quem é ele, você conhece?” Um dos músicos pergunta ao dono, um baixinho, cara de índio, também fora do contexto. Seu rosto lembra um guerreiro Yawalapiti que, apesar de aculturado, reflete no cenho sua ascendência, suas crenças e seus valores de filho da terra.
Havia me dito, o baixinho, que gostava dele e não se importava de vê-lo no bar. Ele era inofensivo. A música o atraía ao bar.
Simpatizei com ele na hora. Tive vontade de dançar, acompanhar seus gestos e trejeitos a cada música. Infelizmente, o segurança - bem, pelo tamanho e largura, acho que era o segurança - pediu que ele se retirasse. E ele saiu, meio tímido, sorriso amarelo ( também pela falta de escovação) e sem graça. Pensei em dizer ao segurança que ele estava comigo. Não ousei. Acho que também seria retirada do local.
Fiquei a pensar: a hipocrisia humana cheira mal. Não gostamos de ver nossa espécie fracassada. É como assumir nossa vulnerabilidade. E não foi assim que falou Zaratustra? Somos super-homens, não podemos admitir tal visão decadente. A instituição que receberá os donativos é um centro para crianças com câncer; tudo bem! Elas estão lá, não precisamos vê-las para demonstrar o quanto somos caridosos.
E ele, o mendigo, sai, e tudo volta ao normal. O rapaz que indagara ao dono sobre a figura suspira aliviado. A moça imensa de gorda, piercing e braços cheios de tatuagem, também suspira. O coroa, acompanhado da “patroa”, que lascivamente ‘comia com a testa” a mulher de camiseta rosa (que dançava alheia a todos) deu um tapinha solidário nas costas do segurança. Os casais voltam a se beijar. As pessoas ao redor esboçam um olhar de aprovação. A música segue.
Bebo mais um gole da minha Skol. “Mundo cretino!”, penso. Como as pessoas são cretinas. Ninguém questiona a saída do mendigo. Afinal, ele ali é minoria. Nem o dono cara-de- índio questionou, apesar de ser minoria também, e afirmar que gostava dele.
Ele não é um dos nossos; é o que não queremos ser, não podemos ser e não seremos nunca: um fracassado. Por isso, ele não pode ficar diante de nós, não queremos vê-lo. Ele precisa sair. É, realmente, sabemos que ele não está incomodando ninguém. Tá na dele. Sua triste figura é que incomoda. Ele é o que não havemos de ser: um fracasso.
A banda toca agora Catcher In The Rye (O apanhador no campo de centeio), do Guns N' Roses:
“Quando tudo é dito e feito
Nós não somos os únicos
Que olham para a vida desse modo
É o que o velho pessoal diz
Mas cada vez que eu os vejo
Faz-me desejar ter uma arma
Eu pensei que eu era louco
Bem, eu acho que eu teria mais diversão
Acho que eu teria mais diversão
Ooh, o apanhador no campo de centeio novamente,
Ooh ooh ooh, não vai te deixar ficar longe dele
É somente outro dia como hoje
Você decide se eu não tenho que fazer
Então eles irão achar
E eu não vou perguntar a você
Em momento algum ou por muito tempo depois disso
Se está frio lá fora
Eu imaginaria
Completamente sozinho
Oh, oh.
Ooh, o apanhador no campo de centeio novamente,
Ooh ooh ooh, não vai te deixar ficar longe dele
É somente outro dia como hoje
Quando tudo é dito e feito
Quando não somos os únicos
Que olham para a vida deste jeito
É o que o pessoal antigo fala
Como se eles jamais mudassem
Isso não, quem sou eu pra dizer?
Mas cada vez que eu os vejo
Faz-me desejar ter uma arma
Se eu pensei que eu era louco
Bem, eu acho que teria mais diversão
É o que costumava ser - não pra mim
E deveria ter achado alguém que permanecesse insano como eu
Não é um dia comum
De um jeito comum
Tudo de uma vez que esta música que eu escuto
Não seria tocada por qualquer um novamente
Ou ninguém
Que precisou vir de alguém
Precisou vir de alguém que se importou em ser
Não como você, nem como eu
De um jeito comum pra mim
Alguém pôs as rodas em movimento
Corações são memórias
Você era o instrumento
Você era o único
E aí?
Pegou o corpo
Deu ao garoto uma arma
Tirou-nos a inocência
Além de nossa condição
Algum tipo de momento
Está aí
Completamente só, hoje, na cadeia”


. Cara! É o que somos, um fracasso. Quem não se tornou um fracassado em alguma coisa, em algum momento de sua vida? Salinger pode responder.
Somos um fracasso e mendigos da felicidade.

1970


Leitura era meu passatempo, não que não tivesse outras coisas para fazer num colégio interno. Tinha. Muitas. Mas eu era muito introspectiva, conversava pouco, gostava de ficar sozinha.
Naquela semana, não passava despercebido certo alvoroço entre as pessoas. Mas eu, muito desligada, não fazia caso.
Não lembro o que fiz em casa naquele final de semana, mas lembro bem que na 2ª feira, indo para o colégio no Rio Comprido, o trocador do 403, Botafogo doente – dava pra perceber – enumerava, para um passageiro, as qualidades e proezas do Jairzinho. Eu, querendo cochilar um pouco, só tive sossego quando o tal passageiro desceu na Paula de Frontin.
No colégio, o alvoroço era maior ainda. À noite, no dormitório, alguém ligou um rádio de pilha – levar um rádio para o colégio era falta gravíssima. Os generais do exército, que administravam o colégio, proibiam terminantemente tal insubordinação.
De 2ª a 6ª feira, ficávamos isoladas do mundo. À noite, um pouco de televisão, com programas selecionados pela chefia das inspetoras, uma tenente do Exército, de quem se diziam ter participado da 2ª Guerra Mundial. Foi quando tomei conhecimento do que estava acontecendo, ou melhor, estava para acontecer. Era a participação do Brasil na Copa do Mundo, no México. O ano era 1970. Havia uma grande expectativa, se ganhássemos seriamos “Tri”. O Brasil já havia ganhado duas anteriores – e eu nem tomara conhecimento.
Sentamos em torno da cama da colega que ousara levar o radinho. Tem início o jogo. Começamos a ser invadidas pela emoção do radialista. E eu, que não ligava muito, ou melhor, não ligava nada para futebol, também entrei no clima. Cada avanço do adversário, na área brasileira, despertava em nós as mais diversas expressões: Hum! Aí! Ui! Nossa! Não, não! Ufa...!
“... bola brasileira na área do adversário, e lá vai, e dribla o zagueiro e chuta e é gol. Gooooool do Brasil”. Foi uma gritaria só. Minutos depois, uma das meninas do dormitório ao lado entra correndo no nosso, gritando: “Dona Elza, Dona Elza”! Corremos todas para nossas camas, o rádio foi desligado, fingíamos dormir. Dona Elza, a inspetora, entra no dormitório, acende a luz. Cacá, a monitora do dormitório, ensaiando sonolência, fala surpresa: “D Elza, o que houve?”.
- Nada menina, nada, vai dormir, vai dormir.
Dormir nada; voltamos ao rádio.
Foi no intervalo que eu me inteirei melhor sobre a Copa do Mundo. Estava explicado eu desconhecer as anteriores: tinha dois, seis, dez anos. Não tinha condição de me ligar. O Brasil havia ganhado a de 58 e 62, e eu não tinha vivenciado tal emoção.
No segundo tempo a tensão aumentou, roíamos as unhas, esfregávamos as mãos... “E é gol. Gooooool do Brasil!”
Gritaria total. Corremos pelos corredores, batemos nos armários, pulávamos de alegria.
Novamente a inspetora, agora não mais sozinha, mas com um batalhão de inspetoras e professoras, as que dormiam no colégio. Gritaram com a gente, pediram-nos o rádio, que foi entregue. Um outro, no dormitório ao lado, também. Decretaram que tal insurbodinação seria relatada aos generais e ficaríamos de castigo: ”Vão dobrar a semana“. Em outras palavras, ficaríamos sem saída no final de semana.
Voltamos para a cama, ficamos em silêncio. Uma menina se prontificou em fazer umas incursões aos outros dormitórios para ver se tinham rádio. No dormitório em frente havia um, que escapara da inspeção. Fomos todas para lá, ouvir o final do jogo.
E ao término da partida, com a vitória do Brasil, ninguém segurou a gente. Já estávamos condenadas, não tínhamos nada a perder. Carnaval geral. Sambamos nos corredores, fizemos guerrinha de talco. Todo o prédio, de três andares e duas alas, se iluminou. O batalhão de inspetoras e professoras voltou e mesmo assim continuávamos cantando, dançando, felizes. Com muito custo conseguiram nos acalmar. Ameaçaram chamar os seguranças.
Quando tudo terminou, fomos dormir. Meu coração ainda batia de emoção. Emoção não só pela vitória, pois eu era mesmo desligada quanto ao futebol, mas emoção pela transgressão. Desafiamos o sistema de um colégio militar. Anos mais tarde pude avaliar a dimensão do nosso ato.
No final de semana, é obvio, não fomos pra casa, e não escapamos de receber uma baita repreensão do General Amadeu, um dos diretores.
Quando se aproximou o dia do próximo jogo do Brasil, recebemos a notícia, através da Tenente, que a direção do colégio havia permitido a nós, meninas, que ouvíssemos os jogos do Brasil. Se fosse horário de aula, ela seria suspensa. Caso fosse à noite, uma inspetora ficaria em cada dormitório. E assim aconteceu. Foi a primeira vez que eu presenciei uma atitude democrática por parte da direção naquela escola e percebi o alcance do futebol para os brasileiros: como elemento de identidade e de unidade nacional, quebra barreiras e é a manifestação mais igualitária que existe.
1970, ano de Copa do mundo. Ano que eu levantei meus olhos dos livros e comecei a olhar o mundo em minha volta, ano que completei 14 anos, cortei meus cabelos, fiz pela primeira vez as sobrancelhas, raspei os pelos das pernas, coloquei o meu primeiro biquíni. Ano em que o Gabriel disse que me amava e me pediu para ser sua namorada, e eu disse sim. Ano em que me olhei no espelho e descobri que eu estava me tornando uma linda mulher.
1970, ano em que o Brasil foi Tri Campeão Mundial de Futebol. E eu era tão feliz...

COTIDIANO




Da minha janela, no quarto andar, dava pra ver muito bem a vila quase em frente, do outro lado da rua.
Era manhã de verão, verão intenso, quente, e aquela figura, seminua, deitada no telhado da casa me chamou atenção. O sol realmente estava convidativo para um bronzeado, mas não era o caso dela.
No corredor, que na verdade era uma escadaria que subia até a última casa, um ou outro morador que descia, ou subia, olhava aquela figura tão branca exposta ao sol, tendo em seu corpo apenas algo que se assemelhava a uma calcinha de algodão.
Olhei para o relógio da cozinha, 9 horas. Comecei a preparar o almoço, tinha agendado limpar os armários e isso demandaria tempo.
Meio dia, o almoça já está à mesa; olhei pela janela da cozinha e ela continuava lá, branca, inerte, deitada sobre o telhado da segunda casa da vila.
As crianças chegaram para o almoço e eu voltei às minhas tarefas domésticas. Quando terminei a arrumação do último armário, o relógio já marcava quatro horas da tarde. Fui pra cozinha fazer um café. Ao pegar a cafeteira que fica numa prateleira próxima à janela, instintivamente olhei pela janela pra ver se ela continuava no telhado. Não estava mais. Agora ela se encontrava vestida com seu vestido de chita, que também fora lavado, protegida no colo da sua dona, uma menininha ruiva de quatro anos, mais ou menos, que com um carinho materno refazia as tranças do seu cabelo loiro. Sorri; como é bom ser criança.