domingo, 28 de fevereiro de 2010

Quando escura estava a noite, frio estava o chão



Era sempre no mesmo horário. Às quatro da tarde ela passava. Não sei o que me atraía à sua figura. Como outras tantas: meninas, moças, mulheres, ela descia pela Rua Santo Amaro, rumo ao Aterro do Flamengo com o seu cachorro, passeando descontraída. Talvez o andar leve, suave de quem não tem pressa. Talvez seus lábios que, de vez em quando, balbuciavam qualquer coisa para o seu cachorro, um pastor belga, que não combinava muito com ela - Sempre achei que os cães se parecem com seus donos. Acho que é afinidade Não era o seu caso. Sua simplicidade se refletia nos seus vestidos. Sempre de malha, ou crepe, inteiros, cobriam seu corpo até os joelhos: brancos, pretos, cinzas... Nunca estampado. Nenhum “debrum”.

Uma vez, uma única vez, a vi com um vestido amarelo. Tinha um decote em “u”, mangas três quartos, e cingia seu corpo até os quadris. Depois descia numa saia rodada que combinava de maneira perfeita com as suas sandálias de tiras da mesma cor. Era uma tarde - eu acho - de verão. Não sei! No Rio, todas as tardes parecem verão. O sol dourado fazia seu vestido mais amarelo. Seus cabelos negros, em cachos, caíam sobre seu ombro esquerdo. Seu cão, contagiado com a preguiça da tarde e a despreocupação do andar de sua dona, parava a cada três passos. Da varanda do meu ateliê, fiquei a contemplar a cena. Ainda sem descobrir o que me atraía a ela, acompanhei-a com o olhar até o velho portão da Beneficência Portuguesa que sombreava arabescos sobre sua figura. Seu olhar que eu nunca via, pois estava sempre oculto num “raybin”, olhava em frente. Naquela tarde de Van Gogh (batizei-a assim) resolvi pintar a moça numa tentativa de prendê-la para mim.

Quando o quadro ficou pronto, uma onda de insatisfação tomou conta de minha existência. Estava decepcionado. Não conseguia achá-lo pronto. Faltava algo. O quê? Toda a tarde punha-me na varanda a esperar. E quando ela passava, ficava pintando-a na mente. Mais vermelho nos lábios... Mais branco na face... De volta ao quadro, tentava retratá-la do jeito que eu a via : um sol. Uma luz que passou a brilhar no meu coração cada vez que eu a via. Era isso que ela era. E eu queria trazer essa luz, esse sol para dentro do meu ateliê e não conseguia. Os meus prêmios nas galerias, no exterior, não valiam mais nada diante da minha incapacidade de pintá-la. O que faltava para minha luz ser completa?

As semanas que se seguiram foram de chuva. Um aguaceiro. E, é claro, ela não apareceu. Fiquei igual à criança gripada com a cara pregada na vidraça, olhando a rua. O mundo chorava. O Rio de Janeiro chorava. A“Santo Amaro” chorava. As pessoas com seus cães não mais se dirigiam ao Aterro. Até mesmo o Outeiro perdera sua glória. A menina sol não passara. Meu coração chorava órfão de amor. A chuva se foi, o sol apareceu. E as tardes deixaram de ser verão, pois não mais a via. Fiquei a imaginar que ela havia mudado de bairro, viajado, algo assim. Quase entrei em pânico. Se havia se mudado, não mais a veria. Não! Não podia pensar nessa possibilidade.

Pensei em indagar aos vizinhos, mas tive vergonha. Esperei. Dias. Esperei pacientemente por ela; horas a fio, sentado na espreguiçadeira, ouvindo um vinil de Maria Callas, pensando minha existência: aos 45 anos, solteirão, já grisalho, tomado por um sentimento que me confundia, sentia-me como um colegial à espera de seu primeiro amor.

Um dia, ela surge, descendo a rua como quem anda nas nuvens. O cheiro das amendoeiras impregnava o ar. O sol pintava toda a rua. Meu coração disparou. Estava irremediavelmente apaixonado. O que fazer? Ficar olhando somente? Descer e falar com ela? Não! Ela não entenderia. Como poderia lhe explicar que há meses a observo e que enlouquecidamente tento pintá-la. “Vou segui-la”, pensei. “Observarei de longe e na primeira oportunidade vou abordá-la como quem não quer nada.”

“Elogiarei o cão. Farei um comentário sobre o tempo, sobre a chuva passada. Quem sabe, ela até mesmo me revele o que fez nesses dias de chuva.” Desci as escadas do meu sobrado num pulo só. Cheguei à rua. Fiquei do outro lado da rua, acompanhando-a de longe. Deixei entre nós uma distância bem grande. Não queria assustá-la. Quando cheguei à esquina não a vi mais. Deduzi que teria atravessado para o aterro, como todos os que passeiam com os seus cachorros o fazem. Quando atravessei as pistas, avistei-a indo em direção à Marina da Glória. Tomei fôlego e acelerei o passo. Chegando à Marina, meus olhos percorreram freneticamente todos os lados. De repente, parei. Lá estava ela. Sentada no píer. Seu pastor, deitado ao lado, tinha a cabeça recostada em seu colo.

Sentei também, à distância, olhando o mar na mesma direção do seu olhar. Como num quadro de Monet, pontilhada de embarcações, a Marina da Glória ressonava. Com os olhos fechados (apesar dos óculos escuros, sabia que estava com os olhos fechados), inclinava o corpo para frente, saboreando o vento que soprava suave. Fechei meus olhos para sentir também aquela sensação. Uma eternidade se passou. Era como se estivéssemos em sintonia. De repente, ela se levantou. Levantei-me também. Andei lentamente em direção a ela. Ela falou alguma coisa com o cão e começou a andar em direção ao jardim.

Um ruído seco seguido de grito de dor. Um garoto num skate passa velozmente por ela derrubando-a no chão. Corri para ela assustado. Depois uma onda de felicidade me invadiu. Eis a oportunidade de que precisava. "Vou ajudá-la”, pensei, “e me oferecerei para levá-la em casa.”

Perto dela, vi como era frágil. Curvei-me para pegar seus braços e fazê-la levantar-se. Ao mesmo tempo lhe indagava se estava bem. Ela repetia “Susa! Susa!” – creio ser o nome do cão. Sentada ainda no chão, passava a mão pela grama, procurando algo: seus óculos, que haviam caído mais adiante. Estiquei-me para pegá-los e olhando de volta para ela, disse-lhe: “deixe-me ajudá-la, apoie-se em mim!” Foi quando ela levantou a cabeça e pude observar o seu rosto. Estava pálido – do susto, talvez. E seus olhos! Deus meu, seus olhos! Eram tudo que jamais poderia acreditar. Eram como duas bolas de gude. Sem transparência, sem brilho, como as “carambolas” da minha infância. Sem luz, sem sol.

Descobri o que tanto me atraía nela. Seus olhos que não existiam por trás daquele “raybin”. Descobri porque não conseguia pintá-la: o meu sol não existia. Ela era cega. Completamente cega. Uma sensação de náusea me invadiu. Tentando parecer natural, ajudei-a a levantar-se, entregando-lhe os óculos. Perguntei se estava bem. Ela murmurou um “sim, está tudo bem.” E pegando firmemente na correia de seu cão, com passos decididos atravessou o jardim.

Fiquei parado, vendo-a se afastar, com um terrível sentimento de piedade. Ainda nauseado, cuspi no chão, numa tentativa de lançar fora o gosto amargo da decepção.

O Outeiro da Glória acendeu suas luzes. Voltei com passos lentos para o meu ateliê, pensando em “Blind Willie Johnson”, para pintar meu mais recente quadro: “Quando escura estava à noite, frio estava o chão.”

“Depois, Deus viu que a luz era boa e

fez separação entre a luz e a escuridão”

(Gênesis 1:4)

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