segunda-feira, 18 de abril de 2011

1970


Leitura era meu passatempo, não que não tivesse outras coisas para fazer num colégio interno. Tinha. Muitas. Mas eu era muito introspectiva, conversava pouco, gostava de ficar sozinha.
Naquela semana, não passava despercebido certo alvoroço entre as pessoas. Mas eu, muito desligada, não fazia caso.
Não lembro o que fiz em casa naquele final de semana, mas lembro bem que na 2ª feira, indo para o colégio no Rio Comprido, o trocador do 403, Botafogo doente – dava pra perceber – enumerava, para um passageiro, as qualidades e proezas do Jairzinho. Eu, querendo cochilar um pouco, só tive sossego quando o tal passageiro desceu na Paula de Frontin.
No colégio, o alvoroço era maior ainda. À noite, no dormitório, alguém ligou um rádio de pilha – levar um rádio para o colégio era falta gravíssima. Os generais do exército, que administravam o colégio, proibiam terminantemente tal insubordinação.
De 2ª a 6ª feira, ficávamos isoladas do mundo. À noite, um pouco de televisão, com programas selecionados pela chefia das inspetoras, uma tenente do Exército, de quem se diziam ter participado da 2ª Guerra Mundial. Foi quando tomei conhecimento do que estava acontecendo, ou melhor, estava para acontecer. Era a participação do Brasil na Copa do Mundo, no México. O ano era 1970. Havia uma grande expectativa, se ganhássemos seriamos “Tri”. O Brasil já havia ganhado duas anteriores – e eu nem tomara conhecimento.
Sentamos em torno da cama da colega que ousara levar o radinho. Tem início o jogo. Começamos a ser invadidas pela emoção do radialista. E eu, que não ligava muito, ou melhor, não ligava nada para futebol, também entrei no clima. Cada avanço do adversário, na área brasileira, despertava em nós as mais diversas expressões: Hum! Aí! Ui! Nossa! Não, não! Ufa...!
“... bola brasileira na área do adversário, e lá vai, e dribla o zagueiro e chuta e é gol. Gooooool do Brasil”. Foi uma gritaria só. Minutos depois, uma das meninas do dormitório ao lado entra correndo no nosso, gritando: “Dona Elza, Dona Elza”! Corremos todas para nossas camas, o rádio foi desligado, fingíamos dormir. Dona Elza, a inspetora, entra no dormitório, acende a luz. Cacá, a monitora do dormitório, ensaiando sonolência, fala surpresa: “D Elza, o que houve?”.
- Nada menina, nada, vai dormir, vai dormir.
Dormir nada; voltamos ao rádio.
Foi no intervalo que eu me inteirei melhor sobre a Copa do Mundo. Estava explicado eu desconhecer as anteriores: tinha dois, seis, dez anos. Não tinha condição de me ligar. O Brasil havia ganhado a de 58 e 62, e eu não tinha vivenciado tal emoção.
No segundo tempo a tensão aumentou, roíamos as unhas, esfregávamos as mãos... “E é gol. Gooooool do Brasil!”
Gritaria total. Corremos pelos corredores, batemos nos armários, pulávamos de alegria.
Novamente a inspetora, agora não mais sozinha, mas com um batalhão de inspetoras e professoras, as que dormiam no colégio. Gritaram com a gente, pediram-nos o rádio, que foi entregue. Um outro, no dormitório ao lado, também. Decretaram que tal insurbodinação seria relatada aos generais e ficaríamos de castigo: ”Vão dobrar a semana“. Em outras palavras, ficaríamos sem saída no final de semana.
Voltamos para a cama, ficamos em silêncio. Uma menina se prontificou em fazer umas incursões aos outros dormitórios para ver se tinham rádio. No dormitório em frente havia um, que escapara da inspeção. Fomos todas para lá, ouvir o final do jogo.
E ao término da partida, com a vitória do Brasil, ninguém segurou a gente. Já estávamos condenadas, não tínhamos nada a perder. Carnaval geral. Sambamos nos corredores, fizemos guerrinha de talco. Todo o prédio, de três andares e duas alas, se iluminou. O batalhão de inspetoras e professoras voltou e mesmo assim continuávamos cantando, dançando, felizes. Com muito custo conseguiram nos acalmar. Ameaçaram chamar os seguranças.
Quando tudo terminou, fomos dormir. Meu coração ainda batia de emoção. Emoção não só pela vitória, pois eu era mesmo desligada quanto ao futebol, mas emoção pela transgressão. Desafiamos o sistema de um colégio militar. Anos mais tarde pude avaliar a dimensão do nosso ato.
No final de semana, é obvio, não fomos pra casa, e não escapamos de receber uma baita repreensão do General Amadeu, um dos diretores.
Quando se aproximou o dia do próximo jogo do Brasil, recebemos a notícia, através da Tenente, que a direção do colégio havia permitido a nós, meninas, que ouvíssemos os jogos do Brasil. Se fosse horário de aula, ela seria suspensa. Caso fosse à noite, uma inspetora ficaria em cada dormitório. E assim aconteceu. Foi a primeira vez que eu presenciei uma atitude democrática por parte da direção naquela escola e percebi o alcance do futebol para os brasileiros: como elemento de identidade e de unidade nacional, quebra barreiras e é a manifestação mais igualitária que existe.
1970, ano de Copa do mundo. Ano que eu levantei meus olhos dos livros e comecei a olhar o mundo em minha volta, ano que completei 14 anos, cortei meus cabelos, fiz pela primeira vez as sobrancelhas, raspei os pelos das pernas, coloquei o meu primeiro biquíni. Ano em que o Gabriel disse que me amava e me pediu para ser sua namorada, e eu disse sim. Ano em que me olhei no espelho e descobri que eu estava me tornando uma linda mulher.
1970, ano em que o Brasil foi Tri Campeão Mundial de Futebol. E eu era tão feliz...

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