segunda-feira, 18 de abril de 2011
O CAVALHEIRO DA TRISTE FIGURA
- O Senhor quer fazer o favor de se retirar?
- Quem, eu?
Ele não entendeu que o segurança falava com ele. Estava vestido de preto, bem a caráter para um evento com bandas de rock. Sua roupa não estava suja; meio suja, talvez, além de meio desbotada.
Próximo ao balcão, fumava um cigarro enquanto ouvia a banda tocar. Fazia gestos com a mão, usando o braço como se fosse o braço de um violão, guitarra, ou baixo, coisa assim. Cabelo em desalinho, pele escura, suponho que pela falta de banho. Não negava sua condição de mendigo, embora tentasse não ser. Camisa bem arrumada por dentro das calças, um cinto de couro mantendo as calças na cintura. Dançava discretamente e fazia gestos de aprovação com a cabeça em direção aos demais clientes. Sim, porque ele também se considerava um cliente, acabara de tomar uma cerveja paga por ele mesmo.
Sucata de luxo começava a tocar, e, a cada acorde, ele esboçava sua aprovação com um sorriso largo, deixando à mostra dentes estragados pela nicotina e, há muito, sem escovação.
Um solo longo de guitarra fez com que ele desse um grito de contentamento: yes!
Sucata de luxo continua: “Come Together” . Sucata... Uma ironia na verdade. Sucata estava mais para aquela pobre figura. Pobre figura! Fez-me lembrar Don Quixote. Isso, uma figura quixotesca, dançando entre os “normais” do cotidiano domingo, com suas famílias, num certo bar temático de subúrbio, que resolvera promover um evento: “Fome de Música”.
Fome de Música é uma iniciativa de músicos classe média que se apresentam sem cachê ou couvert, em troca de doações de alimentos não perecíveis para ofertar a entidades filantrópicas.
Comovente! Todos nós estamos ali, fazendo nossa média com as minorias carentes,tranqüilizando nossas consciências e expurgando nossas culpas diante da miséria alheia, enquanto nos empanturramos de frango à passarinho regado a Skol.
Fome! Quem tá com fome? Eu? Ele? Eles? Nós? Todos nós! Essa fome que resolvemos traduzir como fome de música, na verdade é fome de tudo. Fome de ser alguém, de ter alguém, de ter algo, de ser importante. De ser melhor que os nossos beneficiados.
Todos famintos, percebe-se pelo olhar. A qualquer descuido, alguém pulará no seu pescoço. O menos faminto é o mendigo. Aliás, ele é o único ali que realmente tem fome de música. Ouço do dono do bar que ele, o mendigo, outrora fora um músico, um Band líder conceituado. Por falta de espaço na mídia, caiu no esquecimento, entregando-se à bebida e à mendicância. Não é perigoso, na verdade. É do tipo “ maluco beleza”, mas é testemunho vivo da desgraça humana, do fracasso. O que nenhum de nós estava disposto a ver.
“Quem é ele, você conhece?” Um dos músicos pergunta ao dono, um baixinho, cara de índio, também fora do contexto. Seu rosto lembra um guerreiro Yawalapiti que, apesar de aculturado, reflete no cenho sua ascendência, suas crenças e seus valores de filho da terra.
Havia me dito, o baixinho, que gostava dele e não se importava de vê-lo no bar. Ele era inofensivo. A música o atraía ao bar.
Simpatizei com ele na hora. Tive vontade de dançar, acompanhar seus gestos e trejeitos a cada música. Infelizmente, o segurança - bem, pelo tamanho e largura, acho que era o segurança - pediu que ele se retirasse. E ele saiu, meio tímido, sorriso amarelo ( também pela falta de escovação) e sem graça. Pensei em dizer ao segurança que ele estava comigo. Não ousei. Acho que também seria retirada do local.
Fiquei a pensar: a hipocrisia humana cheira mal. Não gostamos de ver nossa espécie fracassada. É como assumir nossa vulnerabilidade. E não foi assim que falou Zaratustra? Somos super-homens, não podemos admitir tal visão decadente. A instituição que receberá os donativos é um centro para crianças com câncer; tudo bem! Elas estão lá, não precisamos vê-las para demonstrar o quanto somos caridosos.
E ele, o mendigo, sai, e tudo volta ao normal. O rapaz que indagara ao dono sobre a figura suspira aliviado. A moça imensa de gorda, piercing e braços cheios de tatuagem, também suspira. O coroa, acompanhado da “patroa”, que lascivamente ‘comia com a testa” a mulher de camiseta rosa (que dançava alheia a todos) deu um tapinha solidário nas costas do segurança. Os casais voltam a se beijar. As pessoas ao redor esboçam um olhar de aprovação. A música segue.
Bebo mais um gole da minha Skol. “Mundo cretino!”, penso. Como as pessoas são cretinas. Ninguém questiona a saída do mendigo. Afinal, ele ali é minoria. Nem o dono cara-de- índio questionou, apesar de ser minoria também, e afirmar que gostava dele.
Ele não é um dos nossos; é o que não queremos ser, não podemos ser e não seremos nunca: um fracassado. Por isso, ele não pode ficar diante de nós, não queremos vê-lo. Ele precisa sair. É, realmente, sabemos que ele não está incomodando ninguém. Tá na dele. Sua triste figura é que incomoda. Ele é o que não havemos de ser: um fracasso.
A banda toca agora Catcher In The Rye (O apanhador no campo de centeio), do Guns N' Roses:
“Quando tudo é dito e feito
Nós não somos os únicos
Que olham para a vida desse modo
É o que o velho pessoal diz
Mas cada vez que eu os vejo
Faz-me desejar ter uma arma
Eu pensei que eu era louco
Bem, eu acho que eu teria mais diversão
Acho que eu teria mais diversão
Ooh, o apanhador no campo de centeio novamente,
Ooh ooh ooh, não vai te deixar ficar longe dele
É somente outro dia como hoje
Você decide se eu não tenho que fazer
Então eles irão achar
E eu não vou perguntar a você
Em momento algum ou por muito tempo depois disso
Se está frio lá fora
Eu imaginaria
Completamente sozinho
Oh, oh.
Ooh, o apanhador no campo de centeio novamente,
Ooh ooh ooh, não vai te deixar ficar longe dele
É somente outro dia como hoje
Quando tudo é dito e feito
Quando não somos os únicos
Que olham para a vida deste jeito
É o que o pessoal antigo fala
Como se eles jamais mudassem
Isso não, quem sou eu pra dizer?
Mas cada vez que eu os vejo
Faz-me desejar ter uma arma
Se eu pensei que eu era louco
Bem, eu acho que teria mais diversão
É o que costumava ser - não pra mim
E deveria ter achado alguém que permanecesse insano como eu
Não é um dia comum
De um jeito comum
Tudo de uma vez que esta música que eu escuto
Não seria tocada por qualquer um novamente
Ou ninguém
Que precisou vir de alguém
Precisou vir de alguém que se importou em ser
Não como você, nem como eu
De um jeito comum pra mim
Alguém pôs as rodas em movimento
Corações são memórias
Você era o instrumento
Você era o único
E aí?
Pegou o corpo
Deu ao garoto uma arma
Tirou-nos a inocência
Além de nossa condição
Algum tipo de momento
Está aí
Completamente só, hoje, na cadeia”
. Cara! É o que somos, um fracasso. Quem não se tornou um fracassado em alguma coisa, em algum momento de sua vida? Salinger pode responder.
Somos um fracasso e mendigos da felicidade.
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